Seguíamos pela Mutamba, em direcção à Ilha, quando, após uma curva à direita, lá estava um braço erguido no ar, convidando-nos a parar. Em simultâneo, ouviu-se ainda um apito estridente, não fossemos nós não perceber o significado do gesto autoritário.
O Sr. Agente, de farda impecável e luvas brancas, dirige-se ao vidro do condutor, que era o Sr. Jorge. Numa amabilidade que, para os mais distraídos até podia parecer desinteressada, ele diz:
- Bom dia Sr. Condutor, peço desculpa por incomodar, mas podia, por favor, facultar-me a sua documentação e a da viatura?
Esta deve ser das frases mais ouvidas em Luanda, perdendo apenas para o “Xê, não há água outra vez!”
Após receber a documentação, o agente olhou para o Sr. Jorge como se tivesse acabado de tirá-lo do nariz.
- Esses documentos são seus? É você mesmo nessa foto aqui?
- Sim, são. Era um pouco mais novo só. E mais magro talvez…
O olhar do polícia ia alternando, repetidamente, entre a foto no documento e a cara do Sr. Jorge. E assim ficou, nesse reconhecimento, durante cerca de 2 minutos. Por fim, ainda que não parecesse muito convencido, continuou:
- O senhor sabe que não podia virar ali, não sabe?
O Sr. Jorge fez um ar surpreso, colocou a cabeça do lado de fora da janela e olhou para trás, procurando o motivo da infracção. Fez-se de ingénuo:
- Onde, Sr. Agente?
- Onde mais? Ali mesmo de onde você veio. É proibido e, desta vez, o sinal até está lá.
E de facto estava. Não era mais uma das tentativas desesperadas dos polícias, na busca de um motivo para a gasosa. Desta vez o sinal estava mesmo ali, colaborando com a autoridade (ou com a gasosa).
- Epá, peço desculpa mas não vi mesmo o sinal. – Apoiando a testa na palma da mão ele continua: - Vinha distraído e perturbado com uma notícia triste que recebi há pouco. Não vi mesmo.
Eu olhei para o Sr. Jorge e pensei que a Angolanização faz-se rápido. Ouvindo aquele discurso de desculpabilização, tão convincente quanto falso, o Sr. Jorge parecia um autêntico nativo, completamente envolvido nos “esquemas”. Mas não lhe valeu de muito.
- Isso são “makas”* suas. Vou mesmo ter que lhe passar uma multa. A multa são cem mil…
A quantia foi dita lentamente, com um discurso arrastado, dando a entender que havia espaço à negociação. Os cem mil seriam apenas o pior que poderia acontecer.
- E não podemos resolver isto de outra forma, Sr. Guarda? (esta é outra das frases no top 10 das mais usadas em Angola)
- Ai, ai, ai! Mas quando é que isto vai acabar, afinal?
Após a pergunta retórica, cheia de moralismos, os documentos são devolvidos ao Sr. Jorge com um papel extra, entre eles. Uma folha de caderno quadriculada, que estava ali, no meio da carta de condução, por algum motivo.
- Devolve-me só o meu papel que entreguei por engano. Mas coloca aí um recheio para não ter que te passar a multa, ya?
E o papel lá foi entregue ao guarda, recheado com dois mil kwanzas.
"Antes isso que os cem mil", terá pensado o Sr. Jorge. “Isto nunca vai acabar” terá pensado, por seu lado, o Sr. Agente. Até porque não convém.
* para quem não sabe, "maka" significa problema.
Há 8 anos
3 comentários:
Boa, gostei!Como seria o desempenho do sr Jorge no papel de polícia?Dá para imaginar!
Bem, Ricas, agora estas a escrever em força! Sempre que cá venho há novidades... assim é que é bom!
Porque apesar de aqui ter livros para ler, sabe sempre bem umas crónicas da banda... só para me rebolar a rir, como esta!
Tania
É verdade que aí na banda, tudo ou quase tudo se resolve com a dira "gasosa"..Mas olha Ricas, por aqui, em Arganil, também funciona muito isso...Chama-lhe é outra coisa. Excesso de zelo, para os que eles não gostam!Para os que jogam à batota com eles no quartel da GNR ou bebe uns valentes canecos na tasca...aí... eles dizem:«É pá, vá-se lá embora e tente não voltar a fazer!» Isto para não falar nos "GRANDES" do Governo que a sua omnipotência lhes permite retirar a multa, apenas com uma "cunha" de um amigo de de outro amigo do Partido que estiver no poder...
Êta herança que os Angolanos tiveram e aprenderamm BEM DEMAIS dos TUGAS! ahahah
Beijinhos de todos aqui do "Burgo de Coja".
Continua a escrever e volto a insistir: TENS QUE EDITAR UM LIVRO COM ESSAS "MUKANDAS"!
"Tia" Bela.
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