terça-feira, 30 de junho de 2009

O Pedido

A chegada a casa da futura noiva (antes do pedido ainda não o era de facto) deu-se logo depois do almoço. A recepção foi feita por um dos empregados da casa, facto que causou o primeiro mal estar no pai do noivo (o futuro).

Indignou-se porque achava que aquilo não eram maneiras de receber visitas. No mínimo, alguém da familia deveria ter-se dignado a vir abrir a porta.

- Vou relevar o facto porque hoje não é dia para discussões. Mas as coisas não se fazem assim.

Alguém concordou que não se faziam, de facto, e que aquilo não eram maneiras, mas lá acabaram por minimizar o facto.

Remetidos para uma pequena sala, onde já estavam dispostas várias cadeiras, fomos convidados a sentar do lado direito.

- As do lado esquerdo são para os donos da casa. Familia dela!

A ordem foi seguida à risca. Eu tentei escolher a cadeira mais escondida. Do lado direito, é claro. Queria observar atentamente o que se passaria, mas o mais discretamente possível.

Uns minutos de espera e eis que entram os donos das cadeiras da ala esquerda. Acomodaram-se e um deles, presumivelmente o mais velho, o patriarca, levantou-se de seguida:

- Bom, penso que podemos dar início ao acto. Vejo que estão todos presentes, pelo que não há necessidade de mais demoras.

Todo o discurso era extremamente rico em gestos. A primeira sensação que tive era a de estar a assistir a uma peça de teatro amador. Bem amador mesmo! Quase como aqueles que se faziam nos tempos de escola.

- Antes de mais, acho que temos que nos apresentar todos, pelo que peço a cada um dos presentes que se levante, diga o nome e o grau de parentesco em relação aos que se pretendem noivo e noiva.

E lá se foram fazendo as apresentações, onde eu falei pela primeira e única vez. Acabado este processo, sem que eu tenha percebido metade dos nomes e ligações familiares (já que lá em baixo os empregados seguiam em alto som o "derby" entre o Petro de Luanda e o 1º de Agosto), o patriarca voltou ao discurso:

- Agora que nos conhecemos todos, darei então a palavra à vossa familia, para que nos digam o motivo que vos traz por cá (como se não soubessemos todos porque estavamos ali).

E levanta-se, agora, o padrinho do aspirante a noivo.

- Agradecendo o uso da palavra, na qualidade de tio e padrinho quero antes de mais agradecer o facto de nos terem recebido. Bom, estamos aqui porque o meu sobrinho G. pretende pedir em casamento a N. Como tal, deslocamo-nos até aqui para esse efeito.

- Muito bem. Nesse caso esperamos que nos entreguem formalmente a carta com o pedido. Como sabem essa é uma condição indispensável.

- Sim, nós sabemos e fizemo-nos acompanhar pela carta que pretendemos entregar.

O sobe e desce das duas personagens continuava, ao ritmo em que cada um tinha o direito da palavra. Enquanto isso um dos familiares dela sacudia-se nervoso na cadeira. O Petro de Luanda acabava de inaugurar o marcador. Já eu estava deliciado com aquela encenação toda...

Após a entrega da carta, o senhor exibe-a para todos como se fosse um troféu:

- Aqui temos a carta, entregue pelo padrinho do G., que passarei a abrir e a ler. A mesma faz-se acompanhar por 500 dolares, que eu mesmo guardarei (e antes que alguém tivesse ideia diferente, toca a por as notas no bolso).

As acções iam sendo descritas ao pormenor como se fosse para uma plateia de crianças.

A leitura da carta fez-se na íntegra, com todo o seu romantismo, sendo que no final veio o veredicto. E recomeça o sobe e desce:

- Tendo em conta os sentimentos expressos, com todo o amor e poesia, a nossa familia decide aceitar o pedido de casamento. Acolheremos o G. como se fosse nosso filho a partir de agora.

- Ficamos felizes por aceitarem o nosso pedido, como forma de gratidão, pedimos que aceitem também uma pequena oferta que trazemos connosco.

- Bom, não é tradição da nossa familia aceitarmos esse tipo de situações. Não gostamos de receber nada em troca nestas ocasiões (mas os 500 dolares bem guardados). Contudo (e esta palavra foi dita com ênfase, já que muda tudo) em respeito à vossa tradição vamos aceitar o que tiverem para nos dar. (espertos!)

E lá foi entregue o famoso alambamento, muito comum em Angola, que nada mais é que o popular dote que a familia do noivo oferece em troca da rapariga. Como se de uma transação económica se tratasse.

Em alguns casos, onde a tradição é levada ao extremo, a própria familia da noiva elabora uma lista com as ofertas que devem constar do alambamento. É normal pedirem-se fatos para o avô da noiva, sapatos, vestidos para a mãe, etc..

No caso, apenas foram ofertados alguns produtos alimentares e bebidas. Foi um alambamento soft...

Seguiu-se a marcação da data. Unanimemente foi escolhido o primeiro fim de semana de Setembro. Deste ano já? Sim...

Só então, após muito palavreado e encenações, aparece a noiva com a sua orgulhosa barriga (percebe-se agora o Setembro). Alguns tímidos aplausos como recepção e logo o noivo é convidado a oferecer o anel. É o culminar do ritual.

Alguém solta ao fundo um pedido de beijo. Hesitante, o noivo não sabe se deverá ou não corresponder, face ao olhar próximo do futuro sogro. Decide confirmar:

- Posso?

- Ai, já estás na Ilha e perguntas se pode passar na Mutamba? (traduzindo, a Ilha é uma zona de Luanda onde se chega passando antes pelo bairro da Mutamba)

Algumas gargalhadas surgem com o lado espirituoso paterno e eis que o timido beijo acontece.

E tudo terminou em funge, como muita coisa em Angola...

sábado, 27 de junho de 2009

O Lopes

O Lopes é um dos nossos encarregados em obra. Ou, pelo menos, aspirante a tal. E é uma figura toda ela singular. Em termos de fisionomia, só para vos enquadrar, diria que é uma mistura de Kramer (da famosa série Seinfeld) com o António Feio (o das conversas da treta).

Lembro-me que uma das primeiras coisas que me disse, quando o conheci, foi que estava a aprender Quimbundo.

- Assim é mais fácil comunicar com esta gente. Eu como tenho facilidade em línguas, já falo 5, vou dedicar-me a isso.

- Mas Lopes, pelo que me parece todos eles falam Português. Para quê o Quimbundo?

- É para ralhar. Eu ralho com eles em Quimbundo que tem mais impacto. Estes gajos são umas doninhas, fingem que não percebem Português. Aí saio-me com duas larachas em Quimbundo que eles até abanam!

Logo aqui percebi que o Lopes seria uma surpresa diária. E tentei imaginá-lo a dar reprimendas em Quimbundo, o que motivou em mim uma gargalhada interior.

Ao fim do primeiro dia de trabalho já ele tinha uma lista de três folhas A4 com necessidades para a obra. Entre elas, dois frigoríficos (um grande e um pequeno, ora pois) e outras tantas coisas supérfluas que lhe foram vetadas.

- Lopes, não andamos aqui para perder dinheiro. A obra no fim tem que dar lucro, não podemos gastar em coisas que não façam realmente falta.

- Eu percebo engenheiro, mas às vezes ocorrem-me necessidades e eu peço logo. Só depois dou comigo a pensar: "ó Lopes, tem mas é juízo!"

É mais uma particularidade do artista. Fala várias vezes na terceira pessoa. Há dias, perdeu a sua fita métrica e era vê-lo pela obra a gritar com os serventes:

- Vamos lá, todos à procura da fita do Lopes. O Lopes tem coisas para medir e precisa da fita!

É realmente um mamífero sui generis o "nosso" Lopes.

Hoje:

- Ó Engenheiro, chegue lá aqui.

- Diga Lopes.

- Olhe, tenho uma lembrança no meu telefone a tocar, veja. Sabe o que é?

- Não, o que se passa?

- É o Lopes que faz anos hoje. Veja lá que nem me lembrava, não fosse isto tocar e não dava por nada. Quarenta e um aninhos aqui no menino!

- Pelo menos lembrou-se de quantos faz. Parabéns!

Apertei-lhe a mão e fui-me embora a pensar no que ainda terei que ouvir até ao fim da obra. Sacana do Lopes! É bom homem, mas tem cada uma...

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Justificações

Aqui, em Angola, frequentemente nos deparamos com situações inusitadas nas obras. O impensável em qualquer outro lado, aqui é possível.

Dois casos recentes comprovam a teoria. E as justificações para os actos são as mais deliciosas:


- Então você acha bem estar a cortar o cabelo aqui no meio da obra?

- Desculpa só chefe, mas tive que cortar porque tava com bué dor de cabeça.

(...)

Outro foi interpelado, de cuecas, a tomar banho em pleno horário de trabalho. Quando confrontado com o facto a justificação saiu-lhe natural:

- Tou só a tiras as calorias!

terça-feira, 16 de junho de 2009

O cenário de um final de dia no nosso estaleiro...




E para que não pensem que é, de todo, relaxante, aqui vai agora com som...

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Estatísticas

Há dias, em conversa com um colega, ele partilhava comigo a sua surpresa ao perceber que em Luanda viam-se sempre as mesmas caras nos restaurantes, bares, etc..

- Como é que numa cidade com 5 milhões de habitantes esbarramos sempre nos mesmos?

Talvez esta estatística explique tudo.

Luanda é a cidade mais cara do Mundo, estando as suas ofertas ao acesso de uma minoria cada vez mais selecta. São, de facto, assustadores os preços exorbitantes que se pagam por serviços medianos.

Além do estatuto social, também a coragem é uma condição primordial para frequentar estes lugares. Esperar 1h30 por uma refeição que nos custará, no mínimo, 50 dolares não é para qualquer um. Apenas uma boa dose de valentia permite tal coisa...

segunda-feira, 8 de junho de 2009

A praia

É curioso que a praia é o único lugar onde não há racismo. Ali, as raças convivem e tentam minimizar as suas diferenças em trabalho árduo sob o sol. Os brancos tentam ficar mulatos (embora alguns só fiquem vermelhos), os mulatos ficam negros e os negros já estão prontos.

Imagino que o próprio Hitler, se tivesse nascido num país à beira mar plantado, aproveitasse o intervalo entre um massacre e outro para se estender na areia, de sunga, a tentar ganhar uma corzinha.

Fora da praia, fazem da cor da pele factor de distinção entre seres mais ou menos superiores. Vá-se lá entender o ser humano…

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Ilustrando um passeio

Saímos de Luanda em direcção ao Sul. O mar acompanha-nos sempre durante a viagem, tornando ainda mais exuberante a paisagem. Cabo Ledo, Porto Amboim e Sumbe merecem pequenas paragens, mas a maior foi em Cachoeira. Até chegarmos, a viagem ia sendo apimentada com histórias sobre as frequentes emboscadas que aconteciam nesta zona, em tempos de guerra. Pela sua natureza propícia, era uma zona dominada pelas tropas da Unita que ali atacavam e rapidamente se escondiam por entre as montanhas.

Felizmente, hoje está ao alcance de todos. Nem que seja em fotos...