Uma manhã no Serviço de Migração e Estrangeiros (SME) é qualquer coisa deste género:
Motivado pelo conselho que me haviam dado, chego o mais cedo possível ao local. Mas o mais cedo possível já parecia demasiado tarde, tendo em conta a quantidade de gente que já lá estava. Entre elas a pessoa que me iria acompanhar e que me recebeu dizendo que já tinha tratado de algumas questões burocráticas, tanto que o meu nome já estaria na lista para que fosse um dos primeiros a ser chamado.
- Mas que questões burocráticas?
- Epá, tenho uns parentes aí dentro do SME que almoçam todos os Domingos lá em casa. Assim devem-me uns favores e eu fui cobrar. Passaste já à frente de uns quantos que dormiram aí na fila. Aqui é assim, temos que “ser vivos”!
E aquele lugar estava cheio de “vivos” que tentavam, de todas as formas, furar a ordem de chegada e a presumível organização. Eu próprio, indirectamente, era um deles.
Sentei-me, então, num dos bancos à espera de ser chamado e fui observando o ambiente. Ao meu lado sentou-se um senhor que foi-se logo apresentando e iniciando diálogo:
- Sou o Soares. Então, muita gente aqui, né?
- Prazer, Ricardo. Sim, muita.
- A sua vez, vai demorar ou tá nos primeiros da lista?
- Acho que não vai demorar muito, e o senhor?
- Eu? Não… Eu só vim aqui para me sentar um pouco e ver o ambiente, não vim tratar de nada! Mas como não tinha mesmo nada para fazer... E às vezes aparecem umas damas fixes!
Fiquei surpreendido com aquela resposta, ou se calhar nem tanto assim. Angola está cheia de gente sem nada para fazer, que apenas vai vivendo o dia a dia, seja nas ruas ou no SME. Não são vagabundos, são disponíveis. Fazem parte da enorme reserva de mão-de-obra ociosa da nação, à espera de ser chamada. Só não vão atrás de trabalho, que isso já é pedir demais. A nação que venha buscá-los. E enquanto a nação não vinha, o Soares enchia as suas horas vagas, que eram todas, a observar as movimentações no SME.
No meio da enorme agitação e barulho, de quando em quando ouvia-se um assobio do Soares, a cada vez que uma mulher passava por nós.
- Essa tá meio acabada, mas ainda tem um restinho pra estragar…
O homem, que devia estar na casa dos 40 anos, naquela idade crepuscular onde o espírito está disposto mas a carne já duvida, ia avaliando cada ser do sexo oposto que o seu raio de visão captava.
Entretanto começara a chamada para o atendimento. A mesma era feita por um dos funcionários que percorria a lista de nomes em voz alta. Mas antes avisou:
- Não vale a pena virem aqui tentar furar a organização. Quem estiver de pé não vai entrar. Só quem eu vir bem sentado, a levantar e a caminhar até aqui é que vou autorizar a entrar.
A revelação fez com que os últimos dissidentes procurassem uma cadeira livre. Como estas já eram escassas, alguém vociferou para o ar:
- Tem muita gente que não vem cá tratar de nada e fica a ocupar o lugar de quem tem muito que fazer. Assim não pode ser!
E o Soares de assobio em assobio…
Os nomes iam sendo gritados e as pessoas entrando, após verificação da documentação. Quando a foto correspondia à figura presente a ordem de entrada era dada. Alguns não escapavam, contudo, ao comentário do funcionário:
- Porra, você é bem feio! Cuidado pra não assustar os meus colegas lá dentro!
E depois de uma gargalhada apressada lá continuava com a chamada, alternando entre cidadãos estrangeiros e nacionais.
O tempo ia passando e a inquietação de quem estava farto de esperar ia começando a sentir-se, mas logo rebatida com amuos.
- Com essa gritaria não chamo mais ninguém. – e cruzava os braços como uma criança ensaiando uma birra.
Contrariada, a multidão calava-se novamente, resignando-se à espera.
Já perto das 11 horas o meu nome lá surgiu e eu entrei. Antes o Soares, com um tom ligeiramente desapontado, disse:
- Xiii, vais embora agora? Vais perder... Ao meio dia é que costumam chegar as damas melhores. Cada uma que até o coração canta!!!!
Mas eu só queria ir-me embora. Pus a impressão digital no documento (que garantia as minhas férias) e fui!
Há 8 anos
1 comentários:
Esta está demais... adorei!
Bjos e até já!
Tânia
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